Além do coração de D. Pedro IV, que será trasladado para o Brasil, há outros restos mortais de santos e criminosos, preservados em Portugal.
Durante mais de cinco horas, peritos do Instituto de Medicina Legal avaliaram o estado de um coração com 187 anos. O órgão, preservado em formol, não foi retirado do vaso de vidro que o preserva intacto. Antes foi removida e avaliada uma pequena amostra. Os cuidados com um coração que há muito deixou de bater têm razão de ser: é o coração de um Rei. Mais precisamente de D. Pedro IV, o monarca que declarou a independência do Brasil e que Brasília quer ver presente nas celebrações do bicentenário, no próximo mês de setembro.
Não foi a primeira vez que a relíquia foi avaliada. Desde 1835, quando o coração foi entregue à cidade do Porto, fizeram-se “várias verificações e análises ao estado de conservação do coração, sempre por peritos de Farmácia e de Medicina das Escolas de Medicina do Porto e mais recentemente pelo Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar”, explica Francisco Ribeiro da Silva, mesário da Venerável Irmandade da Lapa, onde está guardada a relíquia.
O coração foi entregue ao então presidente da câmara do Porto, Vicente Ferreira de Novais, cinco meses após a morte do Rei, dentro de um pequeno cofre de prata dourada. Só ao fim de um mês é que os médicos da então Real Escola Cirúrgica do Porto decidiram colocá-lo num vaso de vidro.
Ao longo dos anos, foi necessário fazer alterações. “Segundo a documentação, em 1872 os líquidos foram substituídos. E em 1908 o álcool foi substituído por líquido indefinidamente conservador de Kaiserling”, diz à SÁBADO Francisco Ribeiro da Silva. “Acredito que isso sucedeu mais vezes, não muitas, não obstante as dificuldades de lidar com o vidro sem o partir.”
A viagem transatlântica foi autorizada e o presidente da câmara do Porto, Rui Moreira, acompanhará a relíquia até Brasília, a 8 de setembro. Será a primeira vez que o órgão deixa as quatro paredes que habita. “Para fora do espaço da Igreja jamais o coração saiu.”
Mas a prática não é inédita. “Há corações de santos que fizeram peregrinações pelos Estados Unidos. Desde que esteja mergulhado em formol é duvidoso que mude de natureza”, garante Carlos Evaristo, especialista em relíquias sagradas.
Não é o único coração real preservado há centenas de anos. No Mosteiro de São Vicente de Fora, onde se encontra o Panteão dos Reis da Dinastia de Bragança, estão os corações e as vísceras de quatro monarcas e um príncipe. “Estão guardadas em potes de porcelana chinesa, depositados debaixo do chão da Capela dos Meninos de Palhavã [referente aos filhos bastardos de D. João V], por baixo de pedras recortadas em forma de diamante”, explica Miguel Pires, guia do mosteiro. O coração e as vísceras eram retirados para permitir o processo de embalsamamento. “Encontram-se no mosteiro os corações de D. João V, D. José I, D. João VI, D. Pedro III e do príncipe Augusto [herdeiro do trono do Brasil].”
A sua presença foi confirmada pelo arqueólogo Fernando Rodrigues Ferreira que, no ano 2000, exumou o caixão de madeira que continha o pote de porcelana das entranhas de D. João VI. O objetivo era confirmar a tese de que o monarca, marido de D. Carlota Joaquina e pai de D. Pedro IV, que fugira das tropas napoleónicas para o Brasil, em 1807, tinha sido envenenado. Análises aos pedaços de intestino e de fígado lá encontrados determinaram a causa de morte: envenenamento por arsénio.
Relíquia científica
A única cabeça embalsamada de um criminoso com os olhos abertos em Portugal. “Ele está a olhar para nós”, diz à SÁBADO António Gonçalves Ferreira, diretor do Instituto de Anatomia da Faculdade de Medicina de Lisboa, que há 180 anos guarda a alegada cabeça do homicida em série Diogo Alves. Porquê? Não se sabe. “Não costumava ser assim. Os corpos eram e são embalsamados como morrem, de olhos fechados.”
Foi assim para reis, rainhas e bispos. “Os corpos eram preservados como forma de homenagem, tal como se prestavam aos faraós do Egito”, explica Carlos Evaristo, especialista em relíquias sagradas e fundador da Regalis Lipsanotheca, um repositório de relíquias.
Não foi o caso de Diogo Alves. O galego que serviu em casas de nobres no século XIX, foi preso e condenado à morte na forca, pela morte de cerca de 70 pessoas. Muitas delas, lavadeiras e agricultores que atravessavam o Aqueduto das Águas Livres para chegar a Lisboa e fazer negócio. O homem, e o seu gangue, roubava-os e, de seguida, atirava-os do aqueduto abaixo. A tática resultou: durante meses as autoridades não investigaram os crimes, convencidos de que se tratava antes de suicídios.
Quando foi enforcado, a 19 de fevereiro de 1841, no Cais do Tojo, a sua cabeça foi decepada e entregue à Escola Médico-Cirúrgica com a intenção de a estudar. “No fim do século XIX, procurava-se correlacionar alterações de comportamento com disformias da cabeça”, explica o diretor do Instituto de Anatomia, mas nada foi feito. “Não foram feitos exames, porque a cabeça está intacta”, explica António Gonçalves Ferreira. “E não há qualquer registo de um estudo na Faculdade de Medicina.”
Mais: não é certo que a cabeça, cabelos, bigode e pera louros sejam do galego. “Descobriu-se uma série de documentos antigos sobre crânios identificados como sendo do grupo de Diogo Alves. Levanta dúvidas se a cabeça será mesmo de- le ou de um dos capangas.” Um mistério que não terá resolução. “Até agora, nenhum descendente reclamou a cabeça.”
Uma mão com quase 700 anos
Em Coimbra, a mão de uma rainha declarada santa foi exposta ao público no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, em 2016, por ordem do bispo de Coimbra. Celebravam-se, então, os 500 anos da beatificação da Rainha Santa Isabel, consorte do Rei D. Dinis. A princesa de Aragão morreu em Estremoz em 1336 e foi enterrada, a seu pedido, em Coimbra. Em 1612, quando se abriu pela primeira vez o seu túmulo para o processo de canonização, encontraram o corpo “mui são, inteiro e sem corrupção, de maneira a que a cabeça estava com os cabelos inteiros, louros e sãos, de maneira que pegando por eles estavam fixos. A testa e todo o rosto coberto pela mesma carne, muito alba e bem proporcionada, com nariz, orelhas, olhos e boca, sem corrupção”, lê-se nos autos oficiais. Não foi milagre. “A Rainha Santa Isabel terá sido mumificada, possivelmente com sal nitrato, como as múmias do Egito, porque tem uma aparência escura”, explica Carlos Evaristo. A preservação do corpo terá sido feita para que o cadáver suportasse a viagem de Estremoz, no Alentejo, até Coimbra.
Durante anos a família real portuguesa em visita a Coimbra beijava a mão da rainha Santa e surgiram várias relíquias do seu cabelo. “No tempo de D. Miguel I [aclamado em 1828], o bispo de Coimbra abriu o sarcófago e cortou uma madeixa de cabelo da Rainha, que ofereceu ao Rei e às suas irmãs”, conta Carlos Evaristo. “Nós na Lipsanotheca temos um relicário com o cabelo.”
As relíquias de santos foram durante séculos muito populares. “Não havia igreja que não tivesse a sua pedra d’ara [pedra de mármore colocada no centro do altar com um orifício] onde estava guardada uma relíquia de santo”, explica Carlos Evaristo, coautor do livro Relíquias Sagradas. As relíquias são consideradas pelo Vaticano como sacramentais, por ajudarem à fé cristã, e tiveram o seu auge no século XVIII, depois de o “Papa Pio IX ter mandado exumar cerca de 20 mil cadáveres de mártires das catacumbas de Roma, considerados santos por terem morrido pela fé, e distribuiu as suas relíquias pelo mundo”.
Mas o seu culto tem desaparecido e há relíquias esquecidas em sótãos de igrejas, em reservas de museus e “algumas foram parar ao lixo”, garante Carlos Evaristo. Para travar o seu desaparecimento, o especialista, que ajuda dioceses a preservar e autenticar relíquias, criou um espaço, a Regalis Lipsanotheca (real relicário em latim), em Ourém e Fátima. Aqui, deposita em altares, como manda o Vaticano, uma coleção que só é superada pela Lipsanotheca Pontifícia, situada ao lado da capela privada do Papa no Vaticano e que contém relíquias de todos os santos canonizados pela Igreja.
Canibalismo
O cientista britânico que comeu o coração de Luís XIV
O geólogo inglês William Buckley, deão da Abadia de Westminster, em Londres, ficou conhecido por, em 1848, ter engolido um pedaço do coração do Rei francês Luís XIV, que se encontrava guardado num medalhão de prata da família Harcourt. Não o fez deliberadamente: pensou ser um mineral e quis identificá-lo com a boca.
FONTE: Revista “Sábado”, 2 de Julho de 2022; Páginas
https://www.sabado.pt/vida/detalhe/as-reliquias-mais-macabras-em-portugal